sábado, 9 de fevereiro de 2019

Dialogo de Fidelis a Bento no livro Os Mensageiros

45 - Mente Enferma

Observando e trabalhando sempre, Aniceto considerou:

– Aqui não comparecem apenas os desencarnados enfermos.
Reparem os encarnados, igualmente. Entre o nosso círculo e a assembléia dos irmãos corporificados, a percentagem de trabalha-
dores em relação ao número de doentes e necessitados é quase a mesma.
Designando um cavalheiro aprumado e bem posto, que se mantinha em palestra com o senhor Bentes, doutrinador naquele
grupo, acrescentou:

– Vejam este amigo rodeado de sombra, em conversação com o colaborador de nossa irmã Isabel. Ouçam-lhe a palavra e, de-
pois, ajuízem.
Com efeito, o cavalheiro indicado rodeava-se de pequenas nuvens, mormente ao longo do cérebro. Fixando nele a atenção, eu o ouvia distintamente:

– Há muito – asseverava com ênfase – freqüento as reuniões espiritistas, à procura de alguma coisa que me satisfaça; no entanto e sorriu irônico, ou a minha infelicidade é maior que a dos outros ou estamos diante de mistificação mundial.

Atento à respeitosa atitude do orientador encarnado, prosseguia, orgulhoso:

– Tenho estudado muitíssimo, não me furtando ao crivo da razão rigorosa. Já devorei extensa literatura relativa à sobrevivência humana e, todavia, nunca obtive uma prova. O Espiritismo está cheio de teses sedutoras, mas o terreno se mostra cheio de dúvidas. A obra de Kardec, inegavelmente, representa extraordi-
nária afirmação filosófica; entretanto, encontramos com Richet um acervo de perspectivas novas. A metapsíquica corrigiu muitos vôos da imaginação, trazendo à análise pública observações mais
profundas sobre os desconhecidos poderes do homem. No exame dessas verdades científicas, o mediunismo foi reduzido em suas proporções. Precisamos dum movimento de racionalização, ajus-
tando os fenômenos a critério adequado.

Todavia, meu caro Bentes, vivemos em paisagem de mistificações sutis, distantes das demonstrações exatas.

A essa altura, o interlocutor, muito calmo e seguro na fé, interveio, considerando:

– Concordo, Dr. Fidélis, em que o Espiritismo não deva fugir a toda espécie de considerações sérias; contudo, creio que a doutrina é um conjunto de verdades sublimes, que se dirigem, de preferência, ao coração humano. É impossível auscultar-lhe a grandeza divina com a nossa imperfeita faculdade de observação, ou recolher-lhe as águas puras com o vaso sujo dos nossos raciocínios viciados nos erros de muitos milênios. Ao demais, temos aprendido que a revelação de ordem divina não é trabalho mecânico em leis de menor esforço.

Lembremos que a missão do Evangelho, com o Mestre, foi precedida por um esforço humano de muitos séculos. Antes de morrerem os cristãos nos circos do
martírio, quantos precursores de Jesus foram sacrificados? Primeiramente, devemos construir o receptáculo; em seguida, alcançaremos a bênção. A Bíblia, sagrado livro dos cristãos, é o encontro
da experiência humana, cheia de suor e lágrimas, consubstanciada
no Velho Testamento, com a resposta celestial, sublime e pura, no Evangelho de Nosso Senhor.
O cavalheiro, que respondia pelo nome de Dr. Fidélis, sorria de modo vago, entre a ironia e a vaidade ofendida. Bentes, contu-
do, não perdeu a oportunidade e continuou:
– Se todo serviço sério da existência humana é alguma coisa de sagrado aos nossos olhos, que dizer da expressão divina no trabalho planetário? E considerando a essência do serviço na organização do mundo, que seria de nós se um punhado de espíritos amigos e sábios nos arrebatassem à visão ampla de orbes superiores, impelindo-nos para eles, precipitadamente, tão só pelo fato de nos dispensarem, como indivíduos; uma estima santa?
Estaríamos preparados para a mudança radical? Saberemos o que venha a ser a vida num orbe superior? Teremos trabalhado bastante para entender os divinos desígnios? E a Terra? E as nossas
milenárias dívidas para com o planeta que nos tem suportado as imperfeições? Como residir nos andares mais altos, sem drenar os pântanos que jazem em baixo? Estas considerações tomam-se imprescindíveis no exame de argumentação como a sua, porquanto não poderemos ajuizar, com precisão, as correntes generosas de
um rio caudaloso, observando tão somente as gotas recolhidas no dedal das nossas limitações.

O pesquisador renitente acentuou a expressão irônica do rosto e revidou:

– Você fala como homem de fé, esquecendo que meu esforço se dirige à razão e à ciência. Quero referir-me às ilações inevitá-
veis da consulta livre, às farsas mediúnicas de todos os tempos.
Você está informado de que cientistas inúmeros examinaram as fraudes dos mais célebres aparelhos do mediunismo, na Europa e na América. Ora, que esperar de uma doutrina confiada a mistificadores continentais?

Bentes respondeu, muito sereno e ponderado:

– Está enganado, meu amigo. Estaríamos laborando em erro grave, se colocássemos toda a responsabilidade doutrinária nas
organizações mediúnicas. Os médiuns são simples colaboradores do trabalho de espiritualização. Cada um responderá pelo que fez das possibilidades recebidas, como também nós seremos compelidos a contas necessárias, algum dia. Não poderíamos cometer o absurdo de atribuir a concentração de todas as verdades divinas somente na cabeça de alguns homens, candidatos a novos cultos de adoração. A doutrina, Dr. Fidélis, é uma fonte sublime e pura, inacessível aos pruridos individualistas de qualquer de nós, fonte
na qual cada companheiro deve beber a água da renovação própria. Quanto às fraudes mediúnicas a que se refere, é forçoso reconhecer que a pretensa infalibilidade científica tem procurado
converter os mais nobres colaboradores dos desencarnados em grandes nervosos ou em simples cobaias de laboratório. Os pes-
quisadores, atualmente batizados como metapsiquistas, são estranhos lavradores que enxameiam no campo de serviço sem nada produzirem de fundamentalmente útil. Inclinam-se para a terra, contam os grãos de areia e os vermes invasores, determinam o grau de calor e estudam a longitude, observam as disposições
climáticas e anotam as variações atmosféricas, mas, com grande surpresa para os trabalhadores sinceros, desprezam a semente.

O interlocutor deixou de sorrir e observou:
– Vamos ver, vamos ver... Espero a mensagem dos meus com os sinais iniludíveis da sobrevivência, após a morte...

Aniceto nos tocou de leve, e falou:
– Repararam como este homem traz a mente enfermiça? É um dos curiosos doentes, encarnados. Tem vasta cultura e, todavia, como traz o sentimento envenenado, tudo quanto lhe cai nos
raciocínios participa da geral intoxicação. É pesquisador de superífcie, como ocorre a muita gente. Tudo espera dos outros, examina seu semelhante, mas não ausculta a si mesmo. Quer a realização divina sem o esforço humano; reclama a graça, formulando a exigência; quer o trigo da verdade, sem participar da semeadura;
espera a tranqüilidade pela fé, sem dar-se ao trabalho das obras; estima a ciência, sem consultar a consciência; prefere a facilidade, sem filiar-se à responsabilidade, e, vivendo no torvelinho de
continuadas libações, agarrado aos interesses inferiores e à satisfação dos sentidos físicos, em caráter absoluto, está aguardando mensagens espirituais...

Estávamos admirados, ante as conclusões interessantes do instrutor amigo.

Vicente, que se mantinha sob forte impressão, perguntou:

– Afinal de contas, que deseja este homem?
Aniceto sorriu e respondeu:
– Também ele teria imensas dificuldades para responder. Para nós outros, Vicente, o Dr. Fidélis é um desses enfermos que ainda
não se dispuseram a procurar o alivio, pelo demasiado apego à sensação.


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